“O mais importante é entendermos que os portadores de lesão medular não são indivíduos inférteis, são, na verdade, uma população com uma característica biológica muito peculiar que leva a algumas dificuldades, mas podem, seguramente, planejar e constituir família tendo filhos biológicos.”
De acordo com as recentes resoluções publicadas pelo Conselho Federal de Medicina, “todas as pessoas capazes, que tenham solicitado o procedimento […] podem ser receptoras das técnicas de Reprodução Assistida”. Dessa forma, não podemos tolerar nenhum tipo de preconceito ou limitação para que qualquer indivíduo possa perseguir o desejo de constituir sua família. Isso é verdade, especialmente, para os indivíduos portadores de deficiência motora por lesões medulares.
Sabemos que o trauma raquimedular (TRM) é extremamente frequente em nosso meio. No Brasil, estima-se a ocorrência de sete mil novos casos todos os anos, sendo que 80% dessas pessoas serão homens em idade reprodutiva, muitas vezes, sem que ainda tenham constituído sua família. Sabemos, também, que os homens portadores de TRM encontram, frequentemente, dificuldades com relação à qualidade das ereções (algo que hoje é perfeitamente bem-resolvido com emprego de tratamentos apropriados), além de problemas com relação à ausência de ejaculação. Essa segunda condição torna um pouco mais difícil a ocorrência de gravidez espontânea, sendo necessário o uso de técnicas para obtenção de espermatozoides, particularmente desenvolvidas para indivíduos cadeirantes. O mais importante é entendermos que os portadores de TRM não são indivíduos inférteis, são, na verdade, uma população com uma característica biológica muito peculiar que leva a algumas dificuldades, mas podem, seguramente, planejar e constituir família, assim, tendo filhos biológicos.
ENTENDA COMO
Homens com TRM têm problemas ejaculatórios em até 90% dos casos. Isso ocorre porque o mecanismo que promove a ejaculação possui duas “centrais”: o comando consciente, que provém do córtex cerebral, responsável pelos estímulos, fantasias e inibições; e o comando “automático”, ou autônomo, que funciona por meio de reflexos neurológicos e localiza-se em determinado trecho da medula espinhal (especificamente entre os níveis T10 e S4). Obviamente, este mecanismo é extremamente imbricado e muito bem-coordenado, devendo estar em perfeito funcionamento para que haja o fenômeno da ejaculação em situações normais. Comando cerebral e medular trabalham juntos para tal, em total sinergia.
Quando existe o TRM, o cérebro e as porções mais altas da medula se “desconectam” completamente das porções mais baixas do corpo. Por conseguinte, todo o controle neurológico para “baixo” da lesão se torna exclusivamente reflexo, sem interferência dos comandos cerebrais. Isso vale para todas as regiões do corpo, inclusive, aquelas responsáveis pelo controle da ejaculação. Portanto, para se obter uma ejaculação em homens portadores desse tipo de lesão, é necessário que se faça por meio de um reflexo medicamente induzido, e não por estímulos convencionais. Para isso é importante termos as regiões responsáveis por este reflexo (nível T10 até S4) completamente intactas, ou, pelo menos, funcionantes.
Isso significa que, se essa região estiver afetada pela lesão raquimedular (como na imagem a seguir), as chances de se obter a ejaculação induzida por reflexo são reduzidas. Paradoxalmente, as chances de obter-se sucesso por meio de ejaculações reflexas são maiores quando o TRM é mais alto (portanto, mais grave), pois a região responsável pelo arco-reflexo é mais baixa.
Existem duas formas de conseguir-se ejaculação reflexa:
- Vibroestimulação (VE)
- Eletroejaculação (EEJ)
A vibroestimulação utiliza vibradores de alta amplitude e alta frequência para se aplicar estímulo na pele do genital e induzir um reflexo. Não se trata de vibradores convencionais, e sim de instrumentos específicos, de alta potência, que precisam ser manuseados com cuidado por conta do risco de lesão da pele, tanto pela característica do aparelho como pela ausência de sensibilidade na região. O objetivo, portanto, é induzir um reflexo normalmente inibido pelo comando cerebral. É um método que deve ser exclusivamente reservado para portadores de TRM, sem que haja aplicabilidade em indivíduos sem lesão neurológica. A grande vantagem desse método é seu baixo custo e o fato de não precisar de anestesia ou sedação. Em geral, realiza-se a aplicação durante intervalos de até 3 minutos, seguidos de intervalos de 2 minutos, até 5 vezes por sessão. Quando se induz o reflex
o, recolhe-se o material ejaculado para análise e congelamento para uso em reprodução assistida. As chances de sucesso beiram os 80% quando a região T10-S4 está intacta. Dada a simplicidade e a segurança do procedimento, recomenda-se que essa seja sempre a primeira linha de tentativas de obtenção de espermatozoides, antes de se partir para métodos mais invasivos.
A segunda alternativa para se induzir ejaculação reflexa é a EEJ. Essa técnica envolve a necessidade de anestesia geral em centro cirúrgico hospitalar, para uso de correntes elétricas intestinais a fim de se obter contrações da musculatura envolvida na propulsão do sêmen. É uma técnica menos difundida, com menor praticidade em comparação à VE. Apresenta taxas de sucesso muito altas, mas, classicamente, a qualidade das amostras obtidas por esse método é baixa, levando à grande dificuldade de manuseio de espermatozoides por parte do laboratório de reprodução assistida. Como apresenta características mais invasivas, é comum vê-la substituída por técnicas que envolvem captura cirúrgica, por conta da maior facilidade de manejo laboratorial, além de serem mais rápidas e baratas em nosso meio.
Vale notar que, em ambas as situações (vibroestimulação e eletroejaculação), visamos obter fluido seminal a partir de reflexos. Na grande maioria das vezes, obtemos material de qualidade inferior àquela que o indivíduo teria se a ejaculação fosse espontânea. Isso se deve ao fato de o material seminal permanecer muito tempo (às vezes muitos anos) estático no corpo, sem sair, por conta da impossibilidade de ejaculações naturais. Dessa forma, o ambiente dos órgãos genitais se torna mais e mais hostil, tanto por conta da estase desses fluidos como pelo constante calor (devemos lembrar que o paciente é, em geral, cadeirante, e permanece longos períodos na mesma posição) da região. Infecções urinárias e uso de cateterismo intermitente para esvaziamento da bexiga (tipicamente frequentes nas pessoas portadoras de TRM), também, podem levar à colonização bacteriana da região genital, tornando o ambiente mais tóxico para os espermatozoides. Se nos deparamos com qualidade seminal muito prejudicada, sem condições de ajustes em laboratório, eventualmente, pode ser necessário retirarmos espermatozoides diretamente do interior dos testículos, antes de eles serem depositados no sistema de transporte do epidídimo, onde permanecerão estáticos e sujeitos às intempéries locais. Falha de obtenção de ejaculação reflexa, também, pode levar à necessidade de remoção por via cirúrgica.
IMPORTANTE: as técnicas mais simples, por meio de punções, devem ser reservadas aos indivíduos vasectomizados e com epidídimos saudáveis: no paciente portador de TRM, não há espaço para essa técnica (que retira fluido exatamente do local onde há estase e problemas para os espermatozoides), sendo mais interessante a captura diretamente do interior do testículo, onde o microambiente é preservado.
Como se vê, não faltam opções para viabilizarmos a gravidez para casais em que o marido seja portador de lesão medular. Existem métodos para ajudarmos os espermatozoides a saírem por vias naturais ou cirúrgicas, que são pertinentes para cada tipo de pessoa. Importante ressaltar que esse material espermático, na grande maioria das vezes, precisará ser levado ao útero, ou, mais frequentemente, ao interior do óvulo. Isso quer dizer que, em geral, precisaremos acoplar essas técnicas de obtenção de espermatozoides a uma técnica de reprodução assistida, a ser definida caso a caso.
Fonte:
Sønksen J, Ohl DA. Penile vibratory stimulation and electroejaculation in the treatment of ejaculatory dysfunction. Int J Androl. 2002 Dec;25(6):324-32.
Utida C, et al. Male infertility in spinal cord trauma. Int Braz J Urol. 2005 Jul-Aug;31(4):375-83.
Dr. Guilherme Leme de Souza